quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Kurt Cobain: A Lenda que não morreu! 24ª Parte


CABELO DE ANJO

Los Angeles, Califórnia/Seattle, Washington,
30 de março a 6 de abril de 1994

"Cut Myself on angel's hair and baby's breath"
[Dou a mim mesmo cabelo de anjo e hálito de bebê]
De "Heart-Shaped Box".

PAT SMEAR E MICHAEL MEISEL, da Gold Mountain, apanharam
Kurt no aeroporto de Los Angeles na noite de quarta-feira e o levaram para o
Centro de Recuperação Exodus, uma seção do hospital Daniel Freeman
Marina, em Marina Del Rey. Era a mesma instituição que Kurt havia
freqüentado em setembro de 1992. Era um centro de reabilitação preferido
por astros do rock — Joe Walsh, do Eagles, havia saído no dia anterior e
Gibby Haynes, do Butthole Surfers, estava lá quando ele chegou. Kurt se
registrou para o que estava previsto para ser um programa de 28 dias.Estava
reservado para ele o quarto 206, na instalação de vinte leitos.
Naquela primeira noite ele passou por uma entrevista de admissão
de quarenta minutos realizada por uma enfermeira. Depois, desceu ao
espaço comum e se sentou próximo a Haynes, que havia sido um de seus
ídolos quando adolescente. "Todos estavam se dirigindo para um encontro de
cocainômanos anônimos, mas Kurt disse que ficaria no Exodus, porque
havia acabado de chegar", lembra Haynes. "Ele parecia doente e cansado de
estar doente e cansado." Na quinta-feira pela manhã, Kurt começou o
tratamento, que consistia em terapia em grupo, reuniões e terapia individual
com seu conselheiro de abuso de substâncias, Nial Stimson. "Ele negava
totalmente que tivesse um problema com heroína", disse Stimson. "Eu
perguntei a ele se entendia a gravidade do que lhe acontecera na Itália:
"Cara, você quase morreu! Você precisa levar isto a sério.
Abusar da droga levou você a um ponto em que quase perdeu a
vida. Você percebe quanto isto é serio?" A resposta de Kurt foi "Eu entendo.
Eu só quero desintoxicar e sair daqui". Stimson não fora informado que o
incidente em Roma havia sido uma tentativa de suicídio.
Em conseqüência disso, Kurt estava num quarto normal no
Exodus, embora a uma curta distância ficasse a unidade psiquiátrica
fechada do hospital. Courtney ligou diversas vezes para o Exodus naquele
dia e discutiu com os funcionários quando lhe disseram que Kurt não estava
disponível.
Em suas sessões com Stimson, Kurt raramente mencionava suas
brigas com Courtney. Em lugar disso, disse que a preocupação com uma
possível perda de um processo judicial para o diretor Kevin kerslake do vídeo
"Heart-Shaped Box" era o que mais o assustava. Kerslake havia entrado com
uma ação no dia 9 de março, afirmando que ele, e não Kurt, era o autor de
muitas das idéias contidas no vídeo. Kurt disse a seu conselheiro que quase
não conseguira pensar em mais nada desde que a ação de Kerslake havia
sido encaminhada e receava que o caso o arrasasse financeiramente. "Ele me
disse que seu maior medo era que, se perdesse aquele processo, perderia
sua casa", disse Stimson.
Na tarde de quinta-feira, Kurt recebeu a visita de Jackie Farry e
Frances — Courtney não foi porque seu médico a aconselhara a não ir nas
primeiras etapas de sobriedade de Kurt. Na época, Frances estava com um
ano e sete meses de vida; Kurt brincou com ela, mas Farry notou que ele
parecia ausente e supôs que isto se devia ás drogas que o centro havia lhe
administrado para ajudar na abstinência. Ao falar com Farry, Kurt não
mencionou o processo de Kerslake, mas evocou a briga com Courtney acerca
de Lollapalooza. Jackie e Frances ficaram pouco tempo, mas Kackie
prometeu voltar no dia seguinte.
Elas voltaram na manhã de sexta-feira ás onze horas e Jackie
achou Kurt surpreendentemente descansado. "Ele estava com um humor
incrivelmente feliz, o que mão entendi", lembra Farry. "Eu pensava: "Meu
Deus, por um segundo, tomara que ele esteja levando a sério desta vez". Ele
estava exagerando naquilo, dizendo todas aquelas coisas incrivelmente
animadoras para mim e sendo realmente positivo. E aquele não era o seu
jeito — sentar-se e tentar fazer o mundo parecer sensacional. Normalmente
ele era meio rabugento. Mas eu tomei aquilo como um sinal de que era uma
reviravolta positiva em 24 horas." Farry contou a Kurt sobre seus planos
para um programa de televisão e Kurt foi excepcionalmente encorajador,
dizendo-lhe que ela daria uma "pessoa famosa genial" porque "não estava
toda estragada".
A mudança no humor de Kurt não alarmou Farry — ela
simplesmente supôs que ele estava tomando pílulas fornecidas pelo centro.
Em comparação com a primeira visita, ele teve mais contato físico com
Frances e a jogava para o ar para fazê-la rir. Farry saiu para o corredor por
um instante, pensando em dar aos dois algum tempo a sós. Quando ela
regressou, Kurt estava segurando Frances junto ao seu ombro, dando-lhe
tapinhas nas costas e falando ternamente em seu ouvido. Farry arrumou
Frances e disse a Kurt que voltariam para vê-lo no dia seguinte. Ele as
acompanhou até a porta, olhou sua filha nos olhos e disse: "Até logo".
No começo da tarde, Kurt se sentou na área de fumantes atrás do
Exodus para conversar com Gibby. A maioria dos pacientes que repetiam o
programa de reabilitação — entra os quais Kurt e Gibby — abordava o
tratamento com humor negro, e os dois fofocavam sobre aqueles que tinham
problemas piores do que os deles. Um baterista havia desenvolvido
abscessos tão graves que seu braço havia sido amputado. Gibby brincou que
estava contente por ser apenas o vocalista e Kurt soltou uma grande
gargalhada.
Deram risos contidos por causa de um conhecido comum que
havia fugido do Exodus pulando o muro dos fundos: isso era completamente
desnecessário, já que as portas da frente não eram trancadas. "Eu e Kurt
estávamos rindo do idiota que ele era por escapar por cima do muro", lembra
Haynes.
Naquela tarde, Kurt recebeu a visita de Pat Smear e de Joe "Mama"
Nitzburg. Mama era um dos amigos artistas de Courtney que havia passado
pelo tratamento de drogas antes de Kurt. No ano anterior, em um gesto de
altruísmo jamais divulgado, Kurt pagou a anuidade da escola de arte de
Mama quando lhe foi negada ajuda financeira. Courtney havia enviado
Mama para o Exodus com uma carta para Kurt, bombons e um fanzine que
ela achou que ele gostaria de ler. Mama ficou surpreso com a lucidez que
Kurt apresentava com apenas um dia de sobriedade. "Você está ótimo: como
se sente?", perguntou ele a Kurt. "Não me sinto tão mal", foi a resposta
indiferente de Kurt. Os três foram para o pátio dos fundos para que Kurt
pudesse fumar. Gibby ainda estava lá, fazendo as mesmas piadas sobre
pular o muro. Conversaram por cerca de uma hora, mas a maior parte da
conversa foram banalidades. Kurt sempre quisera ir para uma escola de arte
e disse a Mama que estava com inveja.
Mama saiu com a impressão de que Kurt estava sereno: "Seja o
que for que o havia perturbado, ele parecia ter feito as pazes com aquilo". Pat
e Joe saíram por volta das cinco da tarde e, ao partirem, Mama disse a Kurt
que viriam vê-lo novamente. "Ele dava a mostra", observa Mama, "de que é
preciso um viciado em drogas em recuperação para nos dar o sentimento de
"eu-não-posso-fazer-isto-mais-eu-desisto".
Naquela tarde de sexta-feira, Courtney tentou diversas vezes falar
com Kurt pelo telefone e tiveram uma breve conversa. "não importa o que
aconteça", disse-lhe ele, "eu quero que saiba que você fez um disco muito
bom." Ela achou estranho ele mencionar isso, já que o lançamento do disco
fora adiado por mais uma semana. "O que você quer dizer?", perguntou ela,
confusa diante do tom melodramático de sua voz. "apenas se lembre, não
importa o que aconteça, eu amo você." Com isso, ele desligou.
Às 7h23 daquela noite, o companheiro de quarto de Michael Meisel
atendeu o telefone. Era Kurt. "Michael vai estar fora esta noite", anunciou o
companheiro, "você quer que eu peça que ele ligue para você?" Kurt disse
que não iria estar perto de um telefone. Dois minutos depois, ele saiu pela
porta dos fundos do Exodus e escalou o muro de pouco menos de dois
metros de altura, sobre o qual ele e Gibby haviam feito troça pouco antes
naquele dia.
Ele saiu do Exodus apenas com as roupas do corpo. Em seu
quarto, ele deixou um par de camisas e um diário recém-começado contendo
quatro canções embrionárias.
Ao longo de seus 27 anos ele havia enchido duas dúzias de
cadernos diferentes que serviam como seus diários, mas em 1994 ele
raramente escrevia seus pensamentos. No entanto, em algum momento
durante sua estada no Exodus, ele completou uma tarefa de tipo Rorschach,
na qual lhe era pedido que ilustrasse uma dúzia de palavras; os resultados
pareciam algo saído de seus diários. Era o tipo de exercício no qual Kurt
havia primado em toda a sua vida, desde que seu avô o desafiara a desenhar
o Mickey.
Quando solicitado a ilustrar "ressentimento", ele desenhou um
símbolo nazista com pernas. Para expressar "solidário", esboçou uma rua
estreita com dois arranha-céus gigantescos que faziam os prédio vizinhos
parecer anões. Para "ferimento", desenhou uma coluna vertebral com um
cérebro e um coração anexados a ela: parecia um pouco com o verso da capa
de In útero. Para "seguro", retratou um circulo de amigos. para "entrega", fez
um homem irradiando uma luz brilhante.
Para "deprimido", colocou um guarda chuva cercado por gravatas.
Para "determinado", desenhou um pé pisando em uma seringa. E para a
página final do exercício, para expressar "abandono, ele desenhou uma
figura humana em garatuja do tamanho de um formiga em uma imensa
paisagem. Duas horas depois de pular o muro, Kurt usou seu cartão de
crédito para comprar uma passagem de primeira classe para Seattle no vôo
788 da Delta. Antes de embarcar, ligou para a Seattle Limusine e marcou
para se apanhado no aeroporto — pediu explicitamente para que não
enviassem uma limusine. Tentou falar também com Courtney, mas ela não
estava — ele deixou uma mensagem dizendo que havia ligado.
Courtney já o estava procurando em Los Angeles. Assim que soube
que Kurt saíra do Exodus, ficou convencida de que ele iria comprar drogas e
provavelmente ter uma overdose. "Ela estava histérica", lembra Joe Mama.
Courtney começou a ligar para traficantes de drogas e perguntar se
Kurt estava lá: mas não confiava no que eles diziam e ia verificar
pessoalmente. Decidiu também espalhar o boato que ela mesma tinha tido
uma overdose, supondo que esse artifício levaria Kurt a contatá-la. Quando
uma tresloucada Courtney — com três dias de sobriedade — se viu de volta
a conhecidas caçadas a traficantes, deixou de lado a abstinência.
Enquanto isso, Kurt estava no avião. De repente, ele se viu sentado
próximo a Duff McKagan, do Guns N' Roses. McKagan começara sua carreira
em várias bandas punk do noroeste e, apesar de toda animosidade entre o
Nirvana e o Guns, Kurt parecia feliz por ver Duff. Kurt confessou que havia
deixado a reabilitação: Duff disse que entendia, já que ele mesmo estava se
recuperando do vicio de heroína. McKagan conseguiu perceber que as coisas
haviam saído errado. "Todos os meus reflexos me diziam que alguma coisa
estava errada." Os dois conversaram sobre amigos comuns, mas também
havia uma melancolia na conversa — ambos estavam saindo de Los Angeles
e voltando para o Noroeste. "Estávamos falando sobre como é estar voltando
para casa", lembra McKagan. "Foi o que ele disse que estava fazendo, "indo
para casa". Kurt anunciou isto como alguém que havia ficado fora durante
anos, e não três dias. Quando o avião chegou em Seattle, McKagan ia
perguntar se Kurt precisava de uma carona, mas quando se virou Kurt já
havia desaparecido.
Kurt chegou em casa á 1h45 da manhã do sábado, 2 de abril. Se
ele dormiu, não foi por muito tempo — por volta de seis da manhã, quando
rompia a aurora, ele apareceu no quarto de Cali, no primeiro andar da casa.
Cali estava ali com a namorada, Jéssica Hopper, no recesso de
primavera do internato em que estudava. Cali estava namorando Jéssica e
Jennifer Adamson simultaneamente (anteriormente, ele estivera envolvido
com a atriz indicada para o Oscar, Juliette Lewis). Embora Jéssica fosse
mais nova e mais certinha do que Cali (ela não tomava droga nem álcool), ela
o adorava.
Cali havia desmaiado na manhã de sábado depois de cheirar
cocaína. Na noite anterior, numa tentativa de aquecer a gigantesca casa
depois que o óleo do aquecedor acabara, Cali, chapado, acendeu um Presto
Log do lado de fora antes de tenra levá-lo para o seu quarto: acabou
derrubando-o no chão da sala de estar. Quando seus problemas com drogas
aumentaram e seus deveres de babá se reduziram. Cali tinha se tornado o
Kato Kaelin da casas do Cobain. "Àquela altura, Cali não estava a cargo de
coisa alguma", observa Jéssica, "a não ser ajudar a conseguir drogas ou se
certificar de que Kurt não morrera." Naquela manhã, Kurt entrou no quarto
de Cali e se sentou na beirada da cama.
Jéssica acordou, mas Cali não. "Oi, menina da cabeça raspada",
cantarolou Kurt para Jéssica, parodiando a letra de uma canção punk.
Jéssica implorou a Kurt: "Ligue para Courtney! Você precisa ligar para
Courtney: ela está ficando doida".
Ela apanhou um número numa mesa, entregou a ele e observou
enquanto Kurt discava para o Península. A telefonista do hotel informou que
COurtney não estava recebendo ligações. "Aqui é o marido dela. Me liga com
ela", exigiu Kurt. Ele havia se esquecido do codinome que era necessário pra
falar com sua esposa. Ficou repetindo: "Aqui é o marido dela", mas a
telefonista do hotel não completava a ligação. Frustrado, ele desligou. Cali
acordou por um momento e, ao ver Kurt, disse a ele que ligasse para
Courtney.
Quando Cali voltou a cair no sono, Jéssica e Kurt ficaram sentados
em silêncio durante alguns minutos, assistindo á programação da MTV. Kurt
sorriu quando surgiu um vídeo dos Meat Puppets. Cinco minutos depois, ele
ligou para o hotel novamente, mas ainda não completaram sua chamada.
Jéssica caiu no sono observando Kurt folhear um exemplar da revista
Puncture.
Vinte minutos depois, Kurt chamou um táxi da Graytop. Disse ao
motorista que havia "sido roubado recentemente e precisava de munição".
Dirigiram-se para o centro da cidade, mas considerando que eram sete e
meia de uma manhã de sábado, as lojas de material esportivo estavam
fechadas. Kurt pediu ao motorista que o levasse até a esquina da 145 com a
Aurora, dizendo que estava com fome. O mais provável foi que Kurt se
hospedou no motel Crest ou no Quest, lugares em que ele havia ficado antes
— e que ficavam próximos de um de seus traficantes. Naquele dia ele
também foi até a Seattle Guns e comprou uma caixa de cartuchos de
espingarda de calibre 20.
Na casa dos Cobain, o telefone principal tocava a cada dez
minutos, mas Cali tinha medo de atender pensando que fosse Courtney.
Quando ele finalmente atendeu, disse a ela que não tinha visto Kurt. Ainda
sob efeito de drogas, Cali achou que a visita de Kurt no lado da cama havia
sido apenas um sonho. Cali e Jéssica estavam brigando por causa de seu
consumo de drogas e, em um acesso de raiva, ele sugeriu que ela pegasse
um vôo de volta logo cedo. Ele tentou usar o Mastercard com limite até 100
mil dólares que Kurt lhe havia dado para comprar uma passagem aérea, mas
o cartão não foi aceito. Ele ligou para Courtney para reclamar e ela lhe disse
que cancelara os cartões de Kurt achando que isso ajudaria a determinar o
paradeiro dele. Sentindo-se mal, Jéssica foi para a cama e passou a maior
parte dos dois dias seguintes dormindo e tentando ignorar o telefone da
casa, que tocava sem parar.
Nos dois dias que se seguiram, houve noticias dispersas de que
Kurt havia sido visto. Na noite de domingo ele foi visto no restaurante
Cactus, jantando com uma mulher magra, provavelmente sua traficante
Caitlin Moore, e um homem não identificado. Depois de terminar sua
refeição, Kurt lambeu o prato, o que chamou a atenção dos outros fregueses.
Quando a conta foi apresentada, seu cartão de crédito não tinha validade.
"Ele parecia traumatizado ao saber que seu cartão fora recusado", lembra
Ginny Heller, que estava no restaurante. "Ele estava em pé diante do balcão,
tentando preencher um cheque, mas parecia um processo doloroso para ele."
Kurt inventou uma história sobre seu cartão de créditos ter sido roubado.
Naquele domingo, Courtney ligou para detetives particulares das
paginas Amarelas de Los Angeles, até que encontrou um que estava
trabalhando no fim de semana. Tom Grant e seu assistente Ben Klugman a
visitaram no Península naquela tarde.
Ela disse a eles que seu marido havia saído do cetro de
reabilitação, que estava preocupada com a saúde dele e pediu a Grant que
vigiasse o apartamento da traficante Caitlin Moore, onde ela imaginava que
Kurt poderia estar. Grant subcontratou um detetive de Seattle, dando-lhe
ordens para observar a casa de Dylan Carlson e o apartamento de Caitlin
Moore. A vigilância foi montada tarde da noite no domingo. Entretanto, os
detetives não montaram guarda imediatamente na casa do Lago Washington
ou na casa que os Cobain possuíam em Carnation, onde a irmã de Kurt
estava morando na ocasião. Courtney supôs que Cali a informaria se Kurt
aparecesse na casa deles. na manhã de segunda-feira, Cali e Jéssica estava
no meio de mais uma discussão quando o telefone tocou e Cali rosnou: "Não
atenda. È só Courtney e nós sabemos nada de Kurt", Jéssica perguntou a
Cali se ele havia falado com Kurt depois que eles o viram. "O que você quer
dizer com "depois que eu o vi?", indagou Cali, os olhos se arregalando.
Jéssica relatou os acontecimentos de sábado. Cali finalmente contou a
Courtney que de fato Kurt havia estado em casa no sábado.
Em Los Angeles, Courtney estava tentando fazer publicidade para
o disco, apesar do fato de estar novamente passando por uma desintoxicação
em hotel. Na segunda-feira, ela se encontrou com Robert Hilburn dos Los
Angeles Times para falar sobre o novo disco do Hole, Live Through This. Ela
não parava de chorar durante a entrevista e um manual da Narcóticos
Anônimos estava sobre a mesa de centro do quarto. A matéria de hilburn
começava com o Subtítulo: "Exatamente quando Courtney Love deveria estar
se concentrando no Hole e em sua carreira, ela não consegue deixar de se
preocupar com seu marido". "Eu sei que este deveria ser o momento mais
feliz de minha vida", disse Courtney, "e houve momentos em que eu senti
essa felicidade. Mas não agora. Eu achei que havia enfrentado muitos
momentos de dificuldade ao longo dos anos, mas este tem sido o mais
difícil." Naquele mesmo dia ficou ainda mais difícil. Depois da entrevista,
Courtney ligou para Dylan, que informou não ter tido noticias de Kurt.
Courtney achou que Dylan estava mentindo e continuou a questioná-lo. Mas
sua atitude não pareceu mudar o comportamento dele, que disse, categórico
"A última vez que o vi foi quando ele estava saindo para Los Angeles e nós
compramos a espingarda". Era a primeira vez que Courtney ouvia falar de
uma espingarda e ficou histérica. Ela ligou para a policia de Seattle e deu
parte de uma pessoa desaparecida, afirmando ser a mãe do Kurt. O relatório
dizia: "O sr. Cobain fugiu de uma instituição da Califórnia e voou de volta
para Seattle. Ele comprou também uma espingarda e pode ser suicida. O sr.
Cobain pode estar em [endereço de Caitlin Moore], local para compra de
narcóticos". O relatório descrevia Kurt como "não perigoso" mas "armado
com uma espingarda". Courtney pediu á policia que verificasse a casa do
lago Washington e os policiais passaram por lá várias vezes, mas não viram
nenhum movimento. Courtney se encontrou novamente com Tom Grant na
segunda feira e lhe disse que procurasse alguns motéis que Kurt
freqüentava. Os detetives de Seattle verificaram esses locais, mas não
localizaram Kurt.
Na segunda-feira á noite Cali saiu de casa, deixando Jéssica
sozinha no quarto dele. Por volta da meia-noite ela ouviu ruídos. "ouvi
passos no andar de cima e no corredor", lembra ela. "Eles estavam
caminhando com um objetivo, entende, não na ponta dos pés, e por isso
supus que fosse Kurt." No escuro do corredor ela gritou "Oi", mas não ouviu
nenhuma resposta e voltou para o quarto de Cali. Jéssica e Cali haviam sido
instruídos por Courtney de que, como "empregados", deveriam se limitar ao
quarto de Cali. Cali só voltou depois das três da manhã, e ele e Jéssica
dormiram até tarde da manhã seguinte. Na tarde da terça-feira, Courtney
mandou Eric Erlandson do hole ir até a casa do lago Washington procurar
Kurt. "Ele invadiu a casa como um relâmpago, e estava furioso com Cali",
lembra Jéssica. "Vocês dois precisam me ajudar a procurar", ordenou ele.
Erlandson lhes disse que procurassem em todo vão e fenda, porque Kurt
havia escondido uma espingarda: ele insistiu especificamente que eles
procurassem em um compartimento secreto da parte de trás do closet do
quarto principal, que Courtney lhe dissera que Kurt usava. Eles
encontraram o compartimento mas nenhuma arma. Examinaram também
um colchão em busca de um buraco que Kurt havia feito nele para guardar
drogas — estava vazio. Ninguém pensou em procurar na garagem ou na
estufa, e Erlandson saiu apressado rumo á casa em Carnation. Courtney
estava agendada para dar uma entrevista por telefone a The Rocket na terçafeira
pela manhã. Erlandson ligou para a revisa e disse que a entrevista teria
de ser adiada, tal como todas as outras entrevistas de Courtney para o resto
da semana. Ela certamente não teria tempo: estava ao telefone a todo
instante tentando encontrar alguém que tivesse visto Kurt depois de sábado.
Ela acossou Dylan, pois ainda estava convencida de que ele estava
escondendo algo, mas ele parecia tão intrigado com o paradeiro de Kurt
quanto ela. Na quarta-feira pela manhã, 6 de abril, Jéssica Hopper chamou
um táxi para levá-la para o aeroporto. Ela ainda se sentia doente: durante
sua estada não havia nenhuma comida na casa dos Cobain além de bananas
e refrigerante, e fizera tanto frio que ela quase não saíra da cama de Cali.
Enquanto caminhava pela longa entrada de carro até o táxi, ela vomitou.
Courtney continuava a ligar para a casa, mas suas ligações
continuavam sem resposta. Na manhã da quarta-feira, ela disse a Grant que
achava que Cali poderia estar escondendo Kurt. Grant voou até Seattle
naquela noite, apanhou Dylan e foram juntos até o apartamento de Caitlin
Moore, o Marco Pólo, o Seattle Inn e o Crest, mas não encontraram nenhum
sinal de Kurt. Às 2h15 da manhã de quinta feira, vasculharam a casa do
lago Washington, entrando por uma janela da cozinha. A temperatura do
lado de fora havia caído par sete graus centígrados, mas lá dentro parecia
estar ainda mais frio.
Eles foram de quarto em quarto e encontraram a cama desfeita no
quarto principal, mas fria ao toque. A televisão estava ligada na MTV, mas
sem som. Não vendo nenhum sinal de Kurt, saíram ás três da manhã, sem
procurar nos pátios nem na garagem.
Na tarde de quinta-feira, Courtney conseguiu falar com Cali no
apartamento de Jennifer Adamson — ele havia ficando lá porque tinha medo
de ficar na casa dos Cobain. Courtney ficou furiosa e exigiu que ele voltasse
para procurar Kurt. Cali e Jennifer foram juntos de carro, levando uma
amiga, Bonnie Dillard, que queria ver onde moravam os famosos astros do
rock.
Estava começando a anoitecer quando eles chegaram e Cali se
queixou do quanto a casa escura era fantasmagórica. Ele disse a Jennifer
que não queria voltar lá para dentro, mas sabia que Courtney ficaria furiosa
se não o fizesse. Eles entraram e mais uma vez começaram a procurar,
ascendendo as luzes á medida que passavam. Cali e Jennifer davam-se as
mãos ao entrar em cada um dos aposentos. "Francamente", lembra Jennifer,
"a cada minutos esperávamos encontrá-lo morto". Embora a casa fosse
ostensivamente o local de residência de Cali na época, ele saltava a cada
rangido do assoalho, do modo como um personagem num filme de Vicent
Price saltaria quando um morcego voasse de um campanário. Eles
procuravam em todos os pisos, incluísse no sótão do terceiro do terceiro
andar.
Jennifer e Dillard insistiram com Cali para que fossem embora no
instante em que tivessem inspecionado todos os aposentos. A noite estava
caindo e a velha casa de frontões — que era sinistra mesmo num dia
ensolarado — se encheu de longas sombras no crepúsculo. Cali hesitou para
rabiscar um bilhete; "Kurt; eu não posso acreditar que você conseguiu estar
nesta casa sem que eu notasse. Você é um grande imbecil por não ligar para
Courtney e pelo menos informá-la de que está bem. Ela está sofrendo muito,
Kurt, esta manhã ela teve outro acidente e agora está novamente no
hospital. Ela é sua esposa e o ama e vocês têm uma filha. Vê se dá um jeito
de pelo menos dizer a ela que você está bem ou ela vai morrer. Isso não é
justo, cara. Faça alguma coisa, já!" Ele deixou a mensagem na escada
principal.
Foi com um grande suspiro de alivio que o trio entrou no carro e
começou a se dirigir para a longa rama de entrada, Cali e Jennifer na frente,
Dillard atrás.
Quando entravam no Lake Washington Boulevard e aceleravam
rumo á cidade, Dillard mansamente se manifestou: "Vocês sabem, hã, eu
odeio dizer isto mas quando estávamos descendo a rampa da entrada, pensei
ter visto algo acima da garagem".
Jennifer trocou um olhar desesperado de terror com Cali. "Sei lá",
continuou Dillard. "Eu só vi uma sombra lá em cima." "Por que você não
disse nada?", retrucou Jennifer. "Ora, eu não sei", explicou Dillard. "Eu não
pensei que fosse real." Jennifer sabia quanto Dillard era supersticiosa e
manteve o carro no rumo da cidade. "Bem, para mim já chega", declarou
Jennifer. "Eu não vou voltar." Dois dias antes, nas horas que antecediam a
alvorada de terça-feira, 5 de abril, Kurt Cobain havia despertado em sua
cama, os travesseiros ainda com o cheiro do perfume de Courtney Ele havia
inalado pela primeira vez essa fragrância quando ela lhe enviara a caixa de
seda-e-renda em forma de coração, apenas três anos antes: ele ficaria
cheirando a caixa durante horas, imaginando que ela a havia tocado as
partes intima de seu corpo. No quarto, naquela terça-feira, o aroma dela se
misturou com o cheiro ligeiramente picante de heroína cozida — este
também era um cheiro que o despertava.
Fazia frio na casa, e por isso ele tinha dormido com as roupas do
corpo, inclusive seu casaco de veludo marrom. Em comparação com as
noites que ele havia passado dormindo ao relento em caixas de papelão, até
que não estava tão ruim.
Ele estava usando sua confortável camiseta "Half Japanese"
(fazendo propaganda de uma banda punk de Baltimore), suas calças Levi's
favoritas e, quando se sentou na beirada da cama, amarrou os cadarços do
unico par de calçados que possuía — um par de tênis Converse.
A televisão estava ligada, sintonizada na MTV, mas o som estava
desligado. Ele caminhou até o aparelho de som e colocou para tocar o disco
do R.E.M., Automatic for the People, reduzindo o volume para que a voz de
Stipe soasse como um sussurro agradável ao fundo — mais tarde Courtney
encontraria o aparelho ainda ligado e este CD na bandeja. Ele acendeu um
Camel Light e caiu de costas na cama com um bloco com um tamanho oficio
apoiado em seu peito e uma caneta vermelha de ponta fina. O pedaço de
papel branco o deixou num breve transe, mas não devido a um bloqueio de
escritor: ele havia imaginado essas palavras durante semana, meses, anos,
décadas. Ele parou apenas porque até uma folha tamanho oficio parecia
muito pequena, muito finita. Ele já havia escrito uma longa carta pessoa á
sua esposa e filha, rapidamente rabiscada no papel enquanto estava no
Exodus; ele havia trazido esta carta até Seattle e a havia enfiado sob um dos
travesseiros impregnados de perfume. "Você sabe, eu amo você", escreveu ele
naquela carta. "Eu amo Frances. Eu sinto muitíssimo. Por favor, não venha
atrás de mim. Eu sinto muito, muito, muito."Ele havia escrito repetidamente
"Eu sinto muito, enchendo uma página inteira com esse pedido de perdão.
"Eu estarei lá", continuou ele. "Eu protegerei você. Não sei onde estou indo.
Simplesmente não posso mais ficar aqui."
Tinha sido muito difícil escrever aquele bilhete, mas el sabia que
est segunda carta seria igualmente importante e ele precisava ter cuidado
com as palavras.
Ele a endereçava "Para Boddah", o nome de seu amigo de infância
imaginário. Ele usava caracteres minúsculos, deliberadamente, e escrevia
em linha reta se ajuda de pautas. Ele compunha as palavras muito
sistematicamente, certificando-se de que cada uma fosse clara e fácil de ler.
Enquanto escrevia, a iluminação da MTV fornecia a maior parte da
luz, já que o sol ainda estava nascendo. Falando a língua de um simplório
experiente que obviamente preferiria ser um queixoso, castrado, infantil .
Este bilhete deve ser muito fácil de entender.
Todas as advertências feitas nas aulas de punk rock 101 ao longo
dos anos, desde a minha primeira introdução a, digamos assim, ética
envolvendo independência e o abraçar de sua comunidade, se mostraram ser
muito verdadeiras. faz muitos anos agora que não sinto entusiasmo ao ouvir
ou fazer música, bem como ao ler ou escrever. Minha culpa por isso é
indescritível em palavras. Por exemplo, quando estou atrás do palco, as
luzes apagam e o ruído ensandecido da multidão começa, nada me afeta do
jeito que afetava Freddie Mercury, que costumava amar, se deliciar com o
amor e a adoração da multidão. O que é uma coisa que eu totalmente
admiro e invejo. O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês.
Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso
imaginar seria enganar as pessoas, sendo falso e fingindo que estou me
divertindo 100 por cento. Às vezes acho que eu deveria acionar um
despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes
para gostar disso (e eu gosto, Deus, acreditem-me, eu gosto, mas não o
suficiente). Me agrada o fato de que eu e nós atingimos e divertimos uma
porção de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às coisas
depois que elas se vão. Eu sou sensível demais. Preciso ficar um pouco
dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança. Em
nossas últimas três turnês, tive um reconhecimento por parte de todas as
pessoas que conheci pessoalmente e dos fãs de nossa música, mas ainda
não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que eu tenho por
todos. Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as
pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal. O triste, o sensível,
insatisfeito, pisciano, pequeno homem de Jesus. Por que você simplesmente
não aproveita? Eu não sei! Tenho uma esposa que é uma deusa, que
transpira ambição e empatia, e uma filha que me lembra demais de como eu
costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando todo mundo que encontra
porque todo mundo é bom e não vai fazer mal a ela. Isto me aterroriza a
ponto de eu mal conseguir funcionar.
Não posso suportar a idéia de Frances se tornando o triste, o
autodestrutivo e mórbido roqueiro que eu virei. Eu tive muito, muito mesmo,
e sou grato por isso, mas desde os sete anos de idade, passei a ter ódio de
todos os humanos em geral.
Apenas porque eu amo e sinto demais por todas as pessoas, eu
acho. Obrigado a todos do fundo de meu nauseado e ardente estômago por
suas cartas e sua preocupação nos últimos anos. Eu sou mesmo um bebê
errático e mal-humorado! Não tenho mais a paixão, então lembrem-se, é
melhor queimar do que se apagar aos poucos.
Quando soltou a caneta, havia enchido a página inteira, exceto por
cinco centímetros. Ele fumara três cigarros redigindo o bilhete. As palavras
não tinham saído com facilidade e havia erros de grafia e sentenças pela
metade.
Ele não tinha tempo para reescrever vinte vezes esta carta, como
fazia com muitas das cartas de seu diários: estava ficando mais claro lá fora
e ele precisava agir antes que o resto do mundo despertasse. Ele assinou o
bilhete dizendo; "paz, amor, empatia. Kurt Cobaim", preferindo grafar seu
nome em letra de fôrma do que usar uma assinatura, Sublinhou com dois
traços a palavra "empatia": ele a empregaria cinco vezes. Escreveu ainda
mais uma linha — "Frances e COurtney, eu estarei em seu altar" — e enfiou
o papel e a caneta no bolso esquerdo do casaco. No aparelho de som, Stipe
estava cantando sobre o "Man on the Moon" ["homem na Lua"]. Kurt sempre
adorara Andy kaufman — seus amigos rachavam de rir nos tempos do
colégio em Montesano quando ele fazia a imitação de Latka em Táxi. Ele se
levantou da cama e entrou no closet, onde retirou uma tábua da parede.
Neste cubículo secreto havia uma arma dentro de uma capa de
náilon bege, uma caixa de cartuchos de espingarda e uma caixa de charutos
Tom Moore. Ele repôs a tábua, enfiou os cartuchos no bolso, agarrou a caixa
de charutos e aninhou a pesada espingarda sobre seu antebraço esquerdo.
Em um closet do corredor, ele apanhou duas toalhas; ele não precisava
delas, mas alguém precisaria. Empatia.
Desceu silenciosamente os dezenove degraus da larga escadaria.
Estava a cerca de um metro do quarto de Cali e não queria que ninguém o
visse. Ele havia refletido sobre tudo isso, traçado um mapa com a mesma
premeditação que dedicava ás capas de seus discos e a seus vídeos. Haveria
sangue, muito sangue e uma bagunça que ele não queria em sua casa.
Principalmente, ele não queria assombrar este lar, deixar sua filha com o
tipo de pesadelos com que ele havia sofrido.
Quando se dirigia para a cozinha, passou pela soleira da porta
onde ele e Courtney haviam começado a acompanhar o quanto Frances
havia crescido. Apenas uma linha estava ali agora, uma pequena marca de
lápis com o nome dela a cerca de 79 centímetros acima do chão. Kurt nunca
mais veria outras marcas mais altas naquela parede, mas estava convencido
de que a vida de sua filha seria melhor sem ele. Na cozinha, ele abriu a porta
de sua geladeira Traulson de aço inoxidável de 10 mil dólares e apanhou
uma lata de cerveja de raízes da Barq, tomando cuidado para não soltar a
espingarda. Levando essa carga impensável — cerveja de raízes, toalhas,
uma caixa de heroína e uma espingarda, tudo o que mais tarde seria
encontrado num arranjo bizarro — ele, abriu a porta para o quintal e
atravessou o pequeno pátio. A aurora estava rompendo e a neblina pairava
próximo ao chão. A maioria das manhãs em Aberdeen era exatamente assim:
nevoentas, orvalhadas, úmidas. Ele jamais veria Aberdeen novamente:
jamais escalaria efetivamente até o topo da caixa d'água no "Morro do Think
of Me"; jamais compraria a fazenda que ele sonhava em Grays harbor: jamais
acordaria novamente numa sala de espera de hospital tendo fingido ser um
visitante enlutado só para encontrar um lugar quente para dormir: jamais
veria novamente sua mãe, ou irmã, ou pai, ou mulher, ou filha. Ele trilhou
os vinte passos até a estufa, galgou os degraus de madeira e abriu o
conjunto de portas francesas dos fundos. O piso era linóleo: seria fácil de
limpar. Empatia.
Ele se sentou no chão da estrutura de cômodo único, olhando para
as portas da frente. Ninguém poderia vê-lo ali, a menos que estivesse
trepado nas árvores atrás de sua própria propriedade, e isto não era
provável. A ultima coisa que ele desejava era o tipo de cagada que poderia
deixá-lo como um vegetal, e deixá-lo com mais dor ainda. Seus dois tios e
bisavô haviam seguido essa mesma pavorosa trilha e se eles haviam vencido,
ele sabia que também conseguiria. Ele tinha os "genes de suicídio", como
costumava dizer brincando com seus amigos em Grays Harbor. Não queria
nunca mais ver o interior de um hospital novamente, não queria um médico
de jaleco branco apalpando-o, não queria ter um endoscópio em seu
estômago dolorido. Ele estava acabado para aquilo tudo, acabado para seu
estômago: ele não poderia estar mais acabado. Como um grande diretor de
filmes, ele havia planejado este momento ate os mínimos detalhes,
ensaiando esta cena ao mesmo tempo como diretor e como um ator. No
curso dos anos, tinha havido muitos ensaios finais, passagens de raspão que
quase seguiam este caminho, fosse por acidente ou, ás vezes, por querer,
como em Roma. Fora sempre isto que ele guardara vagamente em sua
cabeça, como um ungüento precioso, como a única cura para uma dor que
não passaria. Ele não se importava com a libertação do desejo; ele desejava a
libertação da dor. Ficou sentado pensando nessas coisas por vários minutos.
Fumou cinco Camel Light. Sorveu vários goles de sua cerveja de raízes. Tirou
o bilhete do bolso.
Ainda havia de escrever em letras maiores, que não saíram tão
perfeitas, por causa da superfície em que ele estava. Conseguiu rabiscar
mais algumas palavras: "Por favor, vá em frente, Courtney, por Frances, pela
vida dela que será muito mais feliz sem mim. Eu te amo. Eu te amo". Essas
últimas palavras, escritas mais espaçadas do que todo o resto, haviam
completado a folha. Depositou o bilhete no alto de um monte de terra para
vasos e fincou a caneta no meio, para que, como uma estaca segurasse o
papel no alto, sobre a terra. Tirou a espingarda da capa de náilon macia.
Dobrou cuidadosamente a capa, como um garotinho separando suas
melhores roupas de domingo depois da missa. Tirou a jaqueta, estendeu-a
sobre a capa e colocou as duas toalhas no alto desse monte.
Ah, empatia, um presente delicado. Ele foi até a pia e apanhou
uma pequena quantidade de água para seu fogareiro de droga e sentou-se
novamente. abriu a caixa com 25 cartuchos de espingarda e tirou três,
enfiando-os na câmera da arma. Moveu o mecanismo da Remington para
que um único cartucho estivesse na câmara, retirou a trava de segurança da
arma.
Fumou seu último Camel Light. Tomou mais um golpe da barq. Lá
fora, estava começando um dia nublado — era um dia como aquele em que
ele chegara a este mundo, 27 anos, um mês e dezesseis dias antes. Certa
vez, em seu diário, ele havia tentado contar a história desse seu primeiro
momento de vida: "Minha primeira lembrança era um ladrilho verde-água do
piso e uma mão muito forte me segurando pelos tornozelos. Esta força
deixou claro para mim que eu não estava mais na água e não podia voltar.
tentei chutar e me contorcer, de volta ao buraco, mas ele apenas me
manteve ali, suspenso da vagina de minha mãe. Era como se ele estivesse
me provocando e pude sentir o liquido e o sangue se evaporando e retesando
minha pele. A realidade era o oxigênio me consumindo e o cheiro estéril de
jamais voltar para o buraco, um terror que nunca mais se repetia de novo.
Saber disso era reconfortante e, por isso, comecei meu primeiro ritual de
lidar com as coisa. Não chorei".
Ele agarrou a caixa de charutos e tirou um pequeno saco plástico
que continha cem dólares de heroína preta mexicana — era um bocado de
heroína. Ele pegou metade, um chumaço do tamanho de uma borracha de
lápis e o colocou na colher.
Sistematicamente e habilmente, preparou a heroína e a seringa,
injetando-a logo acima do cotovelo, não muito longe de seu "K" tatuado.
Devolveu os instrumentos para a caixa e se sentiu uma nuvem,
rapidamente flutuando para longe deste lugar. O jainismo pregava que havia
trinta céus e sete infernos, todos dispostos em camadas ao longo de nossas
vidas; se ele tivesse sorte, este seria seu sétimo e último inferno. Afastou
para o lado seus instrumentos, flutuando cada vez mais rápido, sentindo
sua respiração se reduzir. Ele tinha de se apressar agora: Tudo estava se
tornando nebuloso e um matiz verde-água enquadrava cada objeto. Agarrou
a pesada espingarda, encostou o cano contra o céu de sua boca. Faria
barulho: ele tinha certeza disso. E então ele se foi.


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